Era um dia relativamente normal na grande cidade em que a primeira e maior
fábrica da enorme Corporação Faetoria foi fundada. O atual dono da empresa, Samuel
Faetoria Moufette II, estava em seu escritório, seguindo sua rotina típica de fim de
tarde – bebendo uma taça de vinho e apreciando a poluição produzida por seus
domínios. Fora o velho toca-discos liberando o som da 9ª Sinfonia de Beethoven, o
lugar estava em perfeito silêncio. Até que alguém bateu em sua porta negra.
- Uhm... Senhor Samuel? – perguntou o cangambá-encapado, lentamente
entrando no escritório malcheiroso.
- Ah, Caio! Um de meus melhores trabalhadores. – Samuel levantou de sua
cadeira e apertou a mão de seu empregado. – O que te traz aqui a uma hora dessas,
hm? Tenha em mente que o seu horário de trabalho ainda não terminou...
fábrica da enorme Corporação Faetoria foi fundada. O atual dono da empresa, Samuel
Faetoria Moufette II, estava em seu escritório, seguindo sua rotina típica de fim de
tarde – bebendo uma taça de vinho e apreciando a poluição produzida por seus
domínios. Fora o velho toca-discos liberando o som da 9ª Sinfonia de Beethoven, o
lugar estava em perfeito silêncio. Até que alguém bateu em sua porta negra.
- Uhm... Senhor Samuel? – perguntou o cangambá-encapado, lentamente
entrando no escritório malcheiroso.
- Ah, Caio! Um de meus melhores trabalhadores. – Samuel levantou de sua
cadeira e apertou a mão de seu empregado. – O que te traz aqui a uma hora dessas,
hm? Tenha em mente que o seu horário de trabalho ainda não terminou...
- É, eu sei. É por isso que eu vim aqui... Queria te perguntar uma coisa.
- Ora, por que a demora então? Vamos, tire sua dúvida!
- Eu queria perguntar se eu pudesse sair mais cedo... Especificamente, agora.
- Caio... Por que você desejaria sair de minhas propriedades antes do fim de seu
- Sr. Faetoria, eu sei que nós somos próximos, conhecidos já faz um tempo. Mas
este é um assunto que eu prefiro manter pessoal.
A expressão alegre de Samuel se tornou um sério olhar crítico-inquisidor. Caio
era um de seus trabalhadores mais dedicados, seu melhor mecânico. Ele jamais sairia
do trabalho antes da hora certa... O que o levou a mudar de atitude? O cangambá
milionário sentou em sua cadeira novamente, bebeu um gole de vinho e suspirou.
- Ora, por que a demora então? Vamos, tire sua dúvida!
- Eu queria perguntar se eu pudesse sair mais cedo... Especificamente, agora.
- Caio... Por que você desejaria sair de minhas propriedades antes do fim de seu
- Sr. Faetoria, eu sei que nós somos próximos, conhecidos já faz um tempo. Mas
este é um assunto que eu prefiro manter pessoal.
A expressão alegre de Samuel se tornou um sério olhar crítico-inquisidor. Caio
era um de seus trabalhadores mais dedicados, seu melhor mecânico. Ele jamais sairia
do trabalho antes da hora certa... O que o levou a mudar de atitude? O cangambá
milionário sentou em sua cadeira novamente, bebeu um gole de vinho e suspirou.
- Bem, você pode sair. Mas saiba que você pagará por isso.
- Com hora extra?
Faetoria não disse nada. Caio, já meio nervoso, saiu do ambiente e fechou a
porta, saindo das fábricas. Pegando sua mochila, o tímido mefitídeo entrou em um
ônibus rumo a seu lar, atraindo maus olhares das outras espécies ao redor como de
costume. Ao chegar em casa, sua namorada o estava esperando.
- Boa noite, amor! – Disse Luciana, ao ver sua outra metade chegar. – Como foi
o trabalho hoje?
- Ah, nada demais. Limpei algumas chaminés, consertei alguns canos...
- De esgoto?
- É.
Luci, como ela era conhecida, tirou a camiseta branca de seu querido. Seu pelo
estava mais preto que o normal devido à fuligem e sujeira. Caio se agitou para jogar
longe um pouco do pó.
- Você sabe que só isso não vai resolver nada, não é?
- Eu sei, eu sei... Prometo que me arrumo bem, OK?
- Ótimo. Saiba que eles são muito exigentes!
Com estas palavras, Caio e Luciana se beijaram e partiram cada um para um
canto da casa – o macho subiu para tomar um merecido banho, enquanto sua futura
esposa, já de banho tomado, foi se maquiar.
O cangambá tomou um banho demorado, passando cremes, xampus para
pelo corporal e para cabelo (ele, como o resto de sua espécie, tinha um tufo de pelos
brancos na cabeça que poderiam ser considerados cabelo) e escovando os dentes. Ao
sair, se secou, passou desodorante, perfume, hidratante... Ele era um cangambá, sim,
mas isto não significava que ele necessariamente fedia.
- Tá pronto, peludo?
Caio olhou para o lado. Luciana estava na porta do quarto, estupendamente
maquiada e usando seu melhor vestido, enquanto seu amado ainda estava se
vestindo.
- Ah... Ah... E-eu...
- Hehe! Ficou sem palavras, né? Escolhi meu melhor vestido para esta noite.
- *aham* Eu acho que você não precisa se paparicar tanto assim para ver seus
- Você também está muito arrumadinho, hein?
- É que meu caso é diferente, você sabe porquê...
- Caiozinho... Você não precisa sentir vergonha do seu cheiro. Eu gosto de você
do jeito que você é....
- Mas eu não gosto! Enquanto o dinheiro pra fazer a cirurgia não vir, eu vou
continuar me cuidando. É pro nosso bem, você sabe disso...
Luciana suspirou e abraçou seu fedido querido. Mesmo com suas opiniões
diferentes sobre alguns assuntos, os dois se amavam.
- Desculpa por me meter tanto na sua vida. É que você, mesmo sendo uma
jaratataca, é um ótimo namorado! Bem-humorado, gentil, culto...
- Luciana, o Samuel está em parte certo... Desde antes da Revolução Dos
Animais Civilizados, existe um grande preconceito contra cangambás – listrados,
pintados, encapados, jaratatacas... Independente da subespécie, nós somos odiados.
Eu estou tentando dar bons motivos para acabar com todo este preconceito.
- Ser arrumado e perfumado é um?
- Ahn, é... Sabe, nós temos uma infâmia de sermos preguiçosos,
desorganizados. E fedidos, é claro...
- Awwwwn, você está todo vermelhinho! Vamos, se arrume logo, ou vamos
chegar atrasados!
Caio, percebendo que ainda estava só de cueca, se arrumou rapidamente e saiu
com sua amada humana. O trânsito estava bom naquela noite, e logo o casal estava
à frente da pequena residênciados pais de Luciana, que era um pouco afastada dos
bairros centrais da grande cidade onde moravam. O motivo era aparente (ou talvez
vice-versa): A casa era enorme, com portas e janelas de madeira e paredes velhas.
Parecia que foi construída faz muito tempo, o que era estranho em uma cidade tão
nova e moderna. A namorada de Caio bateu na porta.
- Luluzinha, minha querida! – disse o pai de Luciana, abrindo a porta com um
sorriso no rosto.
- Pai, já te disse pra não me chamar de Luluzinha...
- Nossa, como você cresceu desde a última vez que nos vimos! Então, já
arranjou um namorado? Noivo? Marido?
- Bem...
Luciana apontou para Caio. Como seu pai não entendeu o que ela estava
querendo dizer com o gesto, a garota se aproximou de seu jaratataco querido e sorriu,
fazendo cafuné em seu namorado. A expressão de Leonel, pai de Luciana, mudou
de uma de alegria para uma de fúria intensa em um instante. Caio percebeu isso e,
nervoso, levantou a cauda e engoliu a seco.
- A-ah. O-oi, Sr. Leonel...
- Luciana, entre. Agora! Precisamos conversar...
A humana largou de seu amor e foi para dentro de cara emburrada. Caio
perguntou para sua querida qual era o problema, mas ela apenas o abraçou e
continuou seu caminho.
- Uhm... Sr. Leonel? Posso entrar também?
Leonel usou os cantos de seus olhos para olhar para Caio. O animal estava
muito nervoso, quase fedendo.
- Está bem, gambá. Você pode entrar, desde que não suje nada... A sala de
jantar é a terceira porta no corredor à esquerda. A comida já está na mesa, você só
precisa se servir.
- M-muito obrigado pela ajuda, senhor. Mas eu não gosto de quando as
pessoas me chamam de gambá, sabe? Eu preferiria ser chamado de cangambá ou
jaratata...
Leonel foi para o corredor da direita e bateu a porta de seu quarto antes que
Caio pudesse terminar de falar.
- ...ca.
A mãe de Luciana estava esperando animada no quarto, embora sua expressão
também mudou drasticamente ao ouvir a história que seu marido contou. Pelos
gestos, eles estavam definitivamente falando de Caio.
- Luciana, minha filha... Eu não acredito que você fez isso...
- Fiz o quê, mãe? Hein?
- Luciana Moreira! Você sabe muito bem do que estamos falando! Você, a
menina mais bonita da cidade, está namorando aquele... aquele... animal!
- Poxa, pai! Não precisa falar assim do Caio, né? Seres humanos também são
animais, sabia?
- Filha, você não sabe o sofrimento que o tipo dele deu para nossa família
durante aquela maldita revolução!
- Na minha opinião, eles tinham de continuar sendo aberrações pesquisadas
por cientistas...
- Mãe, você não precisa ir tão longe, né? A Revolução foi algo excelente para
os humanos! Ensinou nossa espécie a respeitar os animais, a assumir novas atitudes, a
repensar todo o mundo ao nosso redor...
- E os milhões de vidas humanas perdidas nos confrontos e protestos? Incluindo
os da sua avó e avô? Isso também foi excelente para os humanos? Hein?
Luciana não conhecia um argumento para essa questão que não despertasse
a fúria de seus pais ou que traísse seu amor por Caio, mas, justamente naquele
momento, seu namorado bateu na porta do quarto, salvando sua querida por um triz.
- Você de novo, gambá?
- Olá, Sr. Leonel. E olá, Sra....
- Ana Lúcia.
- ...Ana Lúcia.
- Oi, amorecooooo!
- H-heh, oi Lu...
Luciana saiu da cama onde estava sentada e agarrou Caio como uma criança
agarraria um brinquedo novo, beijando ele na boca. O jaratataca, enrubescido, olhou
para os olhares furiosos de Leonel e Ana Lúcia.
- Ah... Me desculpe por atrapalhar a conversa, mas eu estou com fome.
Poderíamos servir o jantar agora?
- Você por acaso não sabe se servir?
- É claro que eu sei. Eu só prefiro comer junto com vocês... Afinal de contas, é
por isso que os senhores nos convidaram para jantar aqui, não é?
Os pais de Luciana suspiraram profundamente e partiram em rumo à sala de
jantar, com os dois românticos logo atrás. O jantar era um frango assado tradicional
com arroz à grega como acompanhamento. Todos se serviram e começaram a comer,
com os donos da casa olhando fixamente para Caio.
- Então, Caio... Você é o namorado da minha filha, pelo o que eu entendi.
- Sim, senhor Leonel. Eu sou.
- Então, conte-me como vocês se conheceram...
Luciana riu ao ouvir sua mãe falar, como se uma lembrança cômica fosse à tona
em sua mente naquela hora.
- Ai ai, nós nos conhecemos de um jeito muito engraçado! Se lembra de quando
nos vimos pela primeira vez, Caio?
- Eu me lembro sim... A gente se conheceu por um site de namoro. Eu só não
me lembro porquê eu tenho uma conta num negócio daqueles, mas eu tenho.
- É o mesmo caso comigo! Eu tava dando uma limpada no histórico do meu
navegador e acabei topando com o tal site. Eu ainda estava logada e sem notificações,
então resolvi mexer um pouco lá. Acabou que topei na página de usuário do meu
peludo aqui...
- Eu também nem me lembrava do endereço, mas recebi um e-mail sobre a Lu
tentando usar o bate-papo do site comigo. Conversei com ela... e gostei dela.
- Nós conversamos por... uma semana, não foi?
- Sim, uma semana. Foi quando eu recebi uma notificação dizendo que minha
conta grátis expiraria e se tornaria mensalmente paga em poucos dias... Como o preço
era absurdo e eu estou acumulando dinheiro para outros fins desde um tempo atrás,
nós tínhamos de selar nossa relação logo, ou não poderíamos conversar mais. A Lulu
também estava com o mesmo problema, então acabamos organizando um encontro
de última hora na casa dela mesmo.
- Detalhe: nenhuma de nossas contas do site tem fotos, até hoje!
- É mesmo! Não deu tempo pra usar o bate-papo por vídeo e eu esqueci de
colocar na minha conta de que espécie eu era, então nós não sabíamos a aparência de
cada um...
- Foi um baita choque quando eu encontrei um jaratataca batendo na minha
porta, carregando um buquê de flores!
- O buquê de flores não foi nem pra ser romântico, mas pra esconder o meu
cheiro... Eu estava muito, muito nervoso antes mesmo de chegar na casa. Imagina o
fedor quando eu me dei de cara com uma humana linda dessas me esperando...
- Nós nos estranhamos no comecinho, especialmente porque eu já tive alguns
problemas com cangambás ferais antes...
- Mas nós conversamos mais ao vivo e em cores e concluímos que mesmo
sendo tão diferentes, nós fomos feitos um para o outro!
- É. E agora estamos juntos há dois meses.
Como a conversa foi longa, as últimas palavras de Caio também foram as suas
últimas colheradas, e os outros acabaram logo depois. Leonel e Ana Lúcia rezaram,
seguindo sua tradição religiosa, e logo depois recomeçaram a conversa com o casal.
- Muito interessante a sua história, gambá.
- Jaratataca...
- Tanto faz!
- Calma, pai...
- Então, do que você gosta de fazer?
- Ah, meus hobbies? Bem... Eu gosto de ler, tocar violão, escutar música,
escrever histórias e poemas...
- E aonde você trabalha?
- Eu trabalho na fábrica principal da Corporação Faetoria, aqui na zona
industrial da cidade mesmo.
Ana Lúcia, que antes estava quieta, de repente bateu na mesa com toda a força
que podia, quase quebrando a louça que acabou de usar.
- Ah, não! Isso já é demais! Você trabalha para aquele bastardo do Faetoria?
- Poxa, mãe! Eu nunca vi você tão brava... O que você tem contra o chefe do
- Filha, eu já te expliquei! Foram os “seguranças” da família Faetoria que
mataram sua avó e seu avô!
- Sem falar que nossa casa está sob ameaça de tombamento pelo próprio
Samuel Faetoria! Ele quer derrubar uma das construções mais antigas da cidade pra
erguer um lixão aqui, sabia?
- Ahhhh, quer saber? Cansei de vocês! Vamos pra casa, Caiozinho!
- M-mas...
Antes que Caio pudesse acabar de falar, Luciana o puxou pelo braço até o carro,
com seus pais olhando seriamente para eles atrás. Embora o jaratataca fosse um ótimo
motorista e normalmente era quem assumia o volante, foi a humana loira de olhos
claros que dirigiria agora, para assegurar que eles ficassem o mais longe de seus pais o
mais rápido possível. O peludo animal parecia estar triste ou chateado.
- Lulu... Eu me sinto muito incomodado sabendo que seus pais não gostam de
mim. Talvez nós não fomos feitos para ficar juntos mesmo...
- Pelamor, Caio! Os coroas é que deviam ficar incomodados, racistas desse
jeito! Eles não enxergam que você é igual, ou até melhor, que um humano qualquer!
Sem falar que tudo aquilo que eles disseram sobre seu chefe é puro besteirol... Não é?
- Uhm... Eu não tenho certeza.
- Como assim, não tem certeza?
Ao final da pergunta de Luciana, o casal chegou a seu lar... que estava com a
porta da frente aberta! Com o carro estacionado toscamente, os dois rapidamente
entraram em casa. E lá estava Samuel Faetoria, sentado na poltrona da sala, com um
retrato do casal em mãos.
- Tsk, tsk... Até tu, Caio?
- S-senhor Samuel? M-mas como? Eu tranquei as portas e as janelas...
- Ora, Caio Hyde! Eu usei meu dinheiro para construir esta casa para você, um
de meus trabalhadores! Você realmente acha que eu não tenho uma chave extra que
mantenho para mim mesmo?
Samuel deixou o retrato de lado e caminhou rumo a Luciana. Quando chegou
à frente da humana, olhou para ela com um olhar austero. Seu terrível fedor já poluiu
completamente o ar da casa, e a namorada de Caio mal conseguia respirar.
- Então você é Samuel Faetoria, patrão do Caio? Prazer em conhecê-lo...
Luciana estendeu a mão para cumprimentar Samuel, mas este rejeitou o ato
com movimento brusco de nojo.
- Tire tuas mãos de mim, ser inferior! Caio, seu infiel!
- Senhor Samuel, eu sei que isso pode parecer estranho... Mas a Luciana é
diferente das outras humanas! Ela realmente gosta de mim, pelo o que eu sou..
- Realmente gosta de você? Caio, Caio, Caio... Humanos são traíras racistas
falsos naturalmente inferiores a nós! Você está humilhando a si mesmo ao continuar
ao lado de sua “querida”!
- Pois eu prefiro humilhar a mim mesmo do que me separar dela!
- Pois então permaneçam juntos! Tu terás de sair daqui, de qualquer maneira...
- Como assim?
- Humaninha, o Sr. Caio aqui conhece muito bem as normas da Corporação
Faeotoria em relação a trabalhadores com envolvimento romântico, não é?
- S-sim... Artigo nº 21, Parágrafo 9... “A Corporação Faetoria não aceita que
seus trabalhadores se envolvam em relações amorosas. A punição por tal ato é a
demissão e a perda de todos os privilégios que cabem a um trabalhador de nossas
fábricas.”.
- O quê? Mas isso é ridículo!
- Mas é necessário, humanazinha. Pesquisas já comprovaram que romances
prejudicam seriamente o desempenho de qualquer espécie no trabalho, e eu sempre
exijo o desempenho máximo de meus empregados! Então, vocês pombinhos podem
ir arrumando suas malas! Vocês tem uma semana para sair daqui, deixando a casa
vazia para um futuro trabalhador fiel! E Caio... Eu odeio ter de dizer isso, mas você está
demitido!
Samuel saiu furioso da casa do casal e entrou em sua limusine, com seu
motorista particular o levando direto para sua mansão. Caio e Luciana olharam
desesperados um para o outro.
- Caiozinho... Eu não acredito...
- Eu também, Lulu. Eu também. Mas é o jeito...
- E se a gente for contra o seu chefe e não sair daqui?! Isso vai dar uma lição pra ele...
- Melhor não, querida! Lá no trabalho, eu já ouvi histórias sobre as poucas
pessoas que desobedeceram o Samuel. Histórias terríveis... Dizem que eles
desapareceram e nunca mais voltaram.
- Ai ai, está bem. Nós vamos escapulir daqui. Eu também estou muito
estressada, em relação aos meus pais... Talvez seja a coisa certa a fazer.
NOTA DO AUTOR: Caio Hyde, uma de minhas fursonas e o personagem principal desta história, é uma jaratataca (hog-nosed skunk). É um parente pouco conhecido do cangambá-listrado que aparece em todas as três américas, inclusive nas regiões Norte e Nordeste do Brasil! O que diferencia esta espécie do seu "primo" mais conhecido é a capa de pelo superior completamente branca e o focinho mais alongado.
- Com hora extra?
Faetoria não disse nada. Caio, já meio nervoso, saiu do ambiente e fechou a
porta, saindo das fábricas. Pegando sua mochila, o tímido mefitídeo entrou em um
ônibus rumo a seu lar, atraindo maus olhares das outras espécies ao redor como de
costume. Ao chegar em casa, sua namorada o estava esperando.
- Boa noite, amor! – Disse Luciana, ao ver sua outra metade chegar. – Como foi
o trabalho hoje?
- Ah, nada demais. Limpei algumas chaminés, consertei alguns canos...
- De esgoto?
- É.
Luci, como ela era conhecida, tirou a camiseta branca de seu querido. Seu pelo
estava mais preto que o normal devido à fuligem e sujeira. Caio se agitou para jogar
longe um pouco do pó.
- Você sabe que só isso não vai resolver nada, não é?
- Eu sei, eu sei... Prometo que me arrumo bem, OK?
- Ótimo. Saiba que eles são muito exigentes!
Com estas palavras, Caio e Luciana se beijaram e partiram cada um para um
canto da casa – o macho subiu para tomar um merecido banho, enquanto sua futura
esposa, já de banho tomado, foi se maquiar.
O cangambá tomou um banho demorado, passando cremes, xampus para
pelo corporal e para cabelo (ele, como o resto de sua espécie, tinha um tufo de pelos
brancos na cabeça que poderiam ser considerados cabelo) e escovando os dentes. Ao
sair, se secou, passou desodorante, perfume, hidratante... Ele era um cangambá, sim,
mas isto não significava que ele necessariamente fedia.
- Tá pronto, peludo?
Caio olhou para o lado. Luciana estava na porta do quarto, estupendamente
maquiada e usando seu melhor vestido, enquanto seu amado ainda estava se
vestindo.
- Ah... Ah... E-eu...
- Hehe! Ficou sem palavras, né? Escolhi meu melhor vestido para esta noite.
- *aham* Eu acho que você não precisa se paparicar tanto assim para ver seus
- Você também está muito arrumadinho, hein?
- É que meu caso é diferente, você sabe porquê...
- Caiozinho... Você não precisa sentir vergonha do seu cheiro. Eu gosto de você
do jeito que você é....
- Mas eu não gosto! Enquanto o dinheiro pra fazer a cirurgia não vir, eu vou
continuar me cuidando. É pro nosso bem, você sabe disso...
Luciana suspirou e abraçou seu fedido querido. Mesmo com suas opiniões
diferentes sobre alguns assuntos, os dois se amavam.
- Desculpa por me meter tanto na sua vida. É que você, mesmo sendo uma
jaratataca, é um ótimo namorado! Bem-humorado, gentil, culto...
- Luciana, o Samuel está em parte certo... Desde antes da Revolução Dos
Animais Civilizados, existe um grande preconceito contra cangambás – listrados,
pintados, encapados, jaratatacas... Independente da subespécie, nós somos odiados.
Eu estou tentando dar bons motivos para acabar com todo este preconceito.
- Ser arrumado e perfumado é um?
- Ahn, é... Sabe, nós temos uma infâmia de sermos preguiçosos,
desorganizados. E fedidos, é claro...
- Awwwwn, você está todo vermelhinho! Vamos, se arrume logo, ou vamos
chegar atrasados!
Caio, percebendo que ainda estava só de cueca, se arrumou rapidamente e saiu
com sua amada humana. O trânsito estava bom naquela noite, e logo o casal estava
à frente da pequena residênciados pais de Luciana, que era um pouco afastada dos
bairros centrais da grande cidade onde moravam. O motivo era aparente (ou talvez
vice-versa): A casa era enorme, com portas e janelas de madeira e paredes velhas.
Parecia que foi construída faz muito tempo, o que era estranho em uma cidade tão
nova e moderna. A namorada de Caio bateu na porta.
- Luluzinha, minha querida! – disse o pai de Luciana, abrindo a porta com um
sorriso no rosto.
- Pai, já te disse pra não me chamar de Luluzinha...
- Nossa, como você cresceu desde a última vez que nos vimos! Então, já
arranjou um namorado? Noivo? Marido?
- Bem...
Luciana apontou para Caio. Como seu pai não entendeu o que ela estava
querendo dizer com o gesto, a garota se aproximou de seu jaratataco querido e sorriu,
fazendo cafuné em seu namorado. A expressão de Leonel, pai de Luciana, mudou
de uma de alegria para uma de fúria intensa em um instante. Caio percebeu isso e,
nervoso, levantou a cauda e engoliu a seco.
- A-ah. O-oi, Sr. Leonel...
- Luciana, entre. Agora! Precisamos conversar...
A humana largou de seu amor e foi para dentro de cara emburrada. Caio
perguntou para sua querida qual era o problema, mas ela apenas o abraçou e
continuou seu caminho.
- Uhm... Sr. Leonel? Posso entrar também?
Leonel usou os cantos de seus olhos para olhar para Caio. O animal estava
muito nervoso, quase fedendo.
- Está bem, gambá. Você pode entrar, desde que não suje nada... A sala de
jantar é a terceira porta no corredor à esquerda. A comida já está na mesa, você só
precisa se servir.
- M-muito obrigado pela ajuda, senhor. Mas eu não gosto de quando as
pessoas me chamam de gambá, sabe? Eu preferiria ser chamado de cangambá ou
jaratata...
Leonel foi para o corredor da direita e bateu a porta de seu quarto antes que
Caio pudesse terminar de falar.
- ...ca.
A mãe de Luciana estava esperando animada no quarto, embora sua expressão
também mudou drasticamente ao ouvir a história que seu marido contou. Pelos
gestos, eles estavam definitivamente falando de Caio.
- Luciana, minha filha... Eu não acredito que você fez isso...
- Fiz o quê, mãe? Hein?
- Luciana Moreira! Você sabe muito bem do que estamos falando! Você, a
menina mais bonita da cidade, está namorando aquele... aquele... animal!
- Poxa, pai! Não precisa falar assim do Caio, né? Seres humanos também são
animais, sabia?
- Filha, você não sabe o sofrimento que o tipo dele deu para nossa família
durante aquela maldita revolução!
- Na minha opinião, eles tinham de continuar sendo aberrações pesquisadas
por cientistas...
- Mãe, você não precisa ir tão longe, né? A Revolução foi algo excelente para
os humanos! Ensinou nossa espécie a respeitar os animais, a assumir novas atitudes, a
repensar todo o mundo ao nosso redor...
- E os milhões de vidas humanas perdidas nos confrontos e protestos? Incluindo
os da sua avó e avô? Isso também foi excelente para os humanos? Hein?
Luciana não conhecia um argumento para essa questão que não despertasse
a fúria de seus pais ou que traísse seu amor por Caio, mas, justamente naquele
momento, seu namorado bateu na porta do quarto, salvando sua querida por um triz.
- Você de novo, gambá?
- Olá, Sr. Leonel. E olá, Sra....
- Ana Lúcia.
- ...Ana Lúcia.
- Oi, amorecooooo!
- H-heh, oi Lu...
Luciana saiu da cama onde estava sentada e agarrou Caio como uma criança
agarraria um brinquedo novo, beijando ele na boca. O jaratataca, enrubescido, olhou
para os olhares furiosos de Leonel e Ana Lúcia.
- Ah... Me desculpe por atrapalhar a conversa, mas eu estou com fome.
Poderíamos servir o jantar agora?
- Você por acaso não sabe se servir?
- É claro que eu sei. Eu só prefiro comer junto com vocês... Afinal de contas, é
por isso que os senhores nos convidaram para jantar aqui, não é?
Os pais de Luciana suspiraram profundamente e partiram em rumo à sala de
jantar, com os dois românticos logo atrás. O jantar era um frango assado tradicional
com arroz à grega como acompanhamento. Todos se serviram e começaram a comer,
com os donos da casa olhando fixamente para Caio.
- Então, Caio... Você é o namorado da minha filha, pelo o que eu entendi.
- Sim, senhor Leonel. Eu sou.
- Então, conte-me como vocês se conheceram...
Luciana riu ao ouvir sua mãe falar, como se uma lembrança cômica fosse à tona
em sua mente naquela hora.
- Ai ai, nós nos conhecemos de um jeito muito engraçado! Se lembra de quando
nos vimos pela primeira vez, Caio?
- Eu me lembro sim... A gente se conheceu por um site de namoro. Eu só não
me lembro porquê eu tenho uma conta num negócio daqueles, mas eu tenho.
- É o mesmo caso comigo! Eu tava dando uma limpada no histórico do meu
navegador e acabei topando com o tal site. Eu ainda estava logada e sem notificações,
então resolvi mexer um pouco lá. Acabou que topei na página de usuário do meu
peludo aqui...
- Eu também nem me lembrava do endereço, mas recebi um e-mail sobre a Lu
tentando usar o bate-papo do site comigo. Conversei com ela... e gostei dela.
- Nós conversamos por... uma semana, não foi?
- Sim, uma semana. Foi quando eu recebi uma notificação dizendo que minha
conta grátis expiraria e se tornaria mensalmente paga em poucos dias... Como o preço
era absurdo e eu estou acumulando dinheiro para outros fins desde um tempo atrás,
nós tínhamos de selar nossa relação logo, ou não poderíamos conversar mais. A Lulu
também estava com o mesmo problema, então acabamos organizando um encontro
de última hora na casa dela mesmo.
- Detalhe: nenhuma de nossas contas do site tem fotos, até hoje!
- É mesmo! Não deu tempo pra usar o bate-papo por vídeo e eu esqueci de
colocar na minha conta de que espécie eu era, então nós não sabíamos a aparência de
cada um...
- Foi um baita choque quando eu encontrei um jaratataca batendo na minha
porta, carregando um buquê de flores!
- O buquê de flores não foi nem pra ser romântico, mas pra esconder o meu
cheiro... Eu estava muito, muito nervoso antes mesmo de chegar na casa. Imagina o
fedor quando eu me dei de cara com uma humana linda dessas me esperando...
- Nós nos estranhamos no comecinho, especialmente porque eu já tive alguns
problemas com cangambás ferais antes...
- Mas nós conversamos mais ao vivo e em cores e concluímos que mesmo
sendo tão diferentes, nós fomos feitos um para o outro!
- É. E agora estamos juntos há dois meses.
Como a conversa foi longa, as últimas palavras de Caio também foram as suas
últimas colheradas, e os outros acabaram logo depois. Leonel e Ana Lúcia rezaram,
seguindo sua tradição religiosa, e logo depois recomeçaram a conversa com o casal.
- Muito interessante a sua história, gambá.
- Jaratataca...
- Tanto faz!
- Calma, pai...
- Então, do que você gosta de fazer?
- Ah, meus hobbies? Bem... Eu gosto de ler, tocar violão, escutar música,
escrever histórias e poemas...
- E aonde você trabalha?
- Eu trabalho na fábrica principal da Corporação Faetoria, aqui na zona
industrial da cidade mesmo.
Ana Lúcia, que antes estava quieta, de repente bateu na mesa com toda a força
que podia, quase quebrando a louça que acabou de usar.
- Ah, não! Isso já é demais! Você trabalha para aquele bastardo do Faetoria?
- Poxa, mãe! Eu nunca vi você tão brava... O que você tem contra o chefe do
- Filha, eu já te expliquei! Foram os “seguranças” da família Faetoria que
mataram sua avó e seu avô!
- Sem falar que nossa casa está sob ameaça de tombamento pelo próprio
Samuel Faetoria! Ele quer derrubar uma das construções mais antigas da cidade pra
erguer um lixão aqui, sabia?
- Ahhhh, quer saber? Cansei de vocês! Vamos pra casa, Caiozinho!
- M-mas...
Antes que Caio pudesse acabar de falar, Luciana o puxou pelo braço até o carro,
com seus pais olhando seriamente para eles atrás. Embora o jaratataca fosse um ótimo
motorista e normalmente era quem assumia o volante, foi a humana loira de olhos
claros que dirigiria agora, para assegurar que eles ficassem o mais longe de seus pais o
mais rápido possível. O peludo animal parecia estar triste ou chateado.
- Lulu... Eu me sinto muito incomodado sabendo que seus pais não gostam de
mim. Talvez nós não fomos feitos para ficar juntos mesmo...
- Pelamor, Caio! Os coroas é que deviam ficar incomodados, racistas desse
jeito! Eles não enxergam que você é igual, ou até melhor, que um humano qualquer!
Sem falar que tudo aquilo que eles disseram sobre seu chefe é puro besteirol... Não é?
- Uhm... Eu não tenho certeza.
- Como assim, não tem certeza?
Ao final da pergunta de Luciana, o casal chegou a seu lar... que estava com a
porta da frente aberta! Com o carro estacionado toscamente, os dois rapidamente
entraram em casa. E lá estava Samuel Faetoria, sentado na poltrona da sala, com um
retrato do casal em mãos.
- Tsk, tsk... Até tu, Caio?
- S-senhor Samuel? M-mas como? Eu tranquei as portas e as janelas...
- Ora, Caio Hyde! Eu usei meu dinheiro para construir esta casa para você, um
de meus trabalhadores! Você realmente acha que eu não tenho uma chave extra que
mantenho para mim mesmo?
Samuel deixou o retrato de lado e caminhou rumo a Luciana. Quando chegou
à frente da humana, olhou para ela com um olhar austero. Seu terrível fedor já poluiu
completamente o ar da casa, e a namorada de Caio mal conseguia respirar.
- Então você é Samuel Faetoria, patrão do Caio? Prazer em conhecê-lo...
Luciana estendeu a mão para cumprimentar Samuel, mas este rejeitou o ato
com movimento brusco de nojo.
- Tire tuas mãos de mim, ser inferior! Caio, seu infiel!
- Senhor Samuel, eu sei que isso pode parecer estranho... Mas a Luciana é
diferente das outras humanas! Ela realmente gosta de mim, pelo o que eu sou..
- Realmente gosta de você? Caio, Caio, Caio... Humanos são traíras racistas
falsos naturalmente inferiores a nós! Você está humilhando a si mesmo ao continuar
ao lado de sua “querida”!
- Pois eu prefiro humilhar a mim mesmo do que me separar dela!
- Pois então permaneçam juntos! Tu terás de sair daqui, de qualquer maneira...
- Como assim?
- Humaninha, o Sr. Caio aqui conhece muito bem as normas da Corporação
Faeotoria em relação a trabalhadores com envolvimento romântico, não é?
- S-sim... Artigo nº 21, Parágrafo 9... “A Corporação Faetoria não aceita que
seus trabalhadores se envolvam em relações amorosas. A punição por tal ato é a
demissão e a perda de todos os privilégios que cabem a um trabalhador de nossas
fábricas.”.
- O quê? Mas isso é ridículo!
- Mas é necessário, humanazinha. Pesquisas já comprovaram que romances
prejudicam seriamente o desempenho de qualquer espécie no trabalho, e eu sempre
exijo o desempenho máximo de meus empregados! Então, vocês pombinhos podem
ir arrumando suas malas! Vocês tem uma semana para sair daqui, deixando a casa
vazia para um futuro trabalhador fiel! E Caio... Eu odeio ter de dizer isso, mas você está
demitido!
Samuel saiu furioso da casa do casal e entrou em sua limusine, com seu
motorista particular o levando direto para sua mansão. Caio e Luciana olharam
desesperados um para o outro.
- Caiozinho... Eu não acredito...
- Eu também, Lulu. Eu também. Mas é o jeito...
- E se a gente for contra o seu chefe e não sair daqui?! Isso vai dar uma lição pra ele...
- Melhor não, querida! Lá no trabalho, eu já ouvi histórias sobre as poucas
pessoas que desobedeceram o Samuel. Histórias terríveis... Dizem que eles
desapareceram e nunca mais voltaram.
- Ai ai, está bem. Nós vamos escapulir daqui. Eu também estou muito
estressada, em relação aos meus pais... Talvez seja a coisa certa a fazer.
NOTA DO AUTOR: Caio Hyde, uma de minhas fursonas e o personagem principal desta história, é uma jaratataca (hog-nosed skunk). É um parente pouco conhecido do cangambá-listrado que aparece em todas as três américas, inclusive nas regiões Norte e Nordeste do Brasil! O que diferencia esta espécie do seu "primo" mais conhecido é a capa de pelo superior completamente branca e o focinho mais alongado.
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